Uma verdade absoluta
Pois onde dois ou três estiverem
reunidos em meu nome, ali estou no meio deles” (Mt 18,20)
Por
Shigeyuki Nakanose, svd
Após o ano 70 d.C., a intensificação da perseguição dos
judeus fariseus e do império romano mergulhou as comunidades dos judeo-cristãos
em crise profunda. Uma dessas comunidades foi a de Mateus. O evangelho de mesmo
nome surgiu nessa época para orientar a catequese e a vida comunitária a fim de
fortalecer a comunidade na fé e na resistência.
Nasci na ilha de Kaminoshima, em Nagasaki, Japão. É um dos
povoados onde surgiu a organização dos kakure kirishitans (“cristãos
escondidos”), ou seja, os membros da Igreja Católica Apostólica Romana que
estiveram na clandestinidade durante a pesada perseguição de 300 anos.
Com a chegada dos padres portugueses, as atividades missionárias
católicas se iniciaram no Japão em 1449. Por volta de 1585, o número dos
católicos chegou a 200 mil. Mas o crescimento foi bruscamente interrompido,
devido à mudança da política dos governantes japoneses diante da intromissão
estrangeira. Iniciou-se a perseguição:
Em 1587, o regente Hideyoshi, revertendo a política de seu
predecessor, iniciara pavorosa perseguição ao cristianismo. Ela começou quando
vinte e seis padres e fiéis foram punidos em Nishizaka, na região de Nagasaki.
Em seguida, cristãos de todo o país foram expulsos de suas moradias, torturados
e cruelmente mortos. O xógum Ieyasu deu prosseguimento a essa política,
ordenando, em 1614, a expulsão de todos os missionários que estivessem em
território japonês (ENDO, 2011, p. 27-28).
Entre 1614 e 1640, cerca de 6 mil cristãos foram martirizados. A
história registra muita crueldade na execução de cristãos – por exemplo, a
tortura em lavas do vulcão Unzen. Apesar de dura e violenta perseguição, os
cristãos escondidos, ou kakure kirishitans, conservaram a fé até 1873, quando o
Japão voltou a abrir-se para a atividade religiosa.
Durante a perseguição, os cristãos se registravam, oficialmente,
nos respectivos templos do budismo ou do xintoísmo. Cumpriam a ordem de pisar
na imagem sagrada de Jesus ou de Maria para se declararem “não cristãos”. Mas,
por meio da organização secreta, com a liderança dos anciãos, os kakure kirishitans ministravam o batismo, a
eucaristia, o matrimônio etc. e ensinavam o catecismo, transmitindo a fé. Sua
organização e liturgia foram adaptadas à tradição e cultura japonesa. Também
foram estabelecidas várias normas internas baseadas na tolerância,
solidariedade e misericórdia, para fortalecer a unidade e garantir a
sobrevivência do grupo. É um modelo de comunidade cristã em situação de risco
numa tradição e cultura específica: kakure kirishitans.
O Novo Testamento também registra vários modelos de comunidades
cristãs. Uma das comunidades que teriam fortalecido sua organização devido aos
conflitos externos e internos foi a “Igreja” de Mateus (Mt 18,17). Após o ano
70 d.C., a intensificação da perseguição dos judeus fariseus com o império
romano mergulhou as comunidades dos judeo-cristãos em crise profunda. Surgiu
então o Evangelho de Mateus, que orientaria a catequese e a vida comunitária.
De modo especial, Mateus 18,15-22 aborda ensinamentos para a vida em
comunidade.
1. Conflitos nas comunidades de Mateus
Algum tempo depois da destruição do templo de Jerusalém, os
grupos de fariseus ligados ao judaísmo oficial iniciaram uma perseguição
sistemática contra os dissidentes do judaísmo, chegando a expulsá-los das
sinagogas. Nesse período, uma bênção contra eles, considerados hereges, foi
incorporada às 18 bênçãos que os judeus deviam rezar diariamente:
Para os apóstatas, que não haja
esperança. O domínio da arrogância elimina rapidamente em nossos dias. E deixa
os nazareus e os minim perecer em um momento. Deixa-os ser apagados do livro da
vida. E que não sejam escritos junto com os justos (OVERMAN,
1997, p. 59).
A perseguição do grupo de fariseus atinge os judeo-cristãos que
reconhecem e confessam Jesus de Nazaré como o Messias. Para eles, Jesus é o
novo Moisés e o verdadeiro intérprete da Torá:
Com efeito, eu vos asseguro que, se a vossa justiça não
ultrapassar a dos escribas e a dos fariseus, não entrareis no Reino dos Céus.
Ouvistes o que foi dito aos antigos: “Não matarás”; aquele que matar terá de
responder no tribunal. Eu, porém, vos digo: todo aquele que se encolerizar
contra seu irmão terá de responder no tribunal; aquele que chama ao seu irmão
“Cretino!” estará sujeito ao julgamento do Sinédrio; aquele que lhe chamar
“renegado” terá de responder na geena de fogo (Mt 5,20-22).
A insistência que se encontra aqui é para cortar o mal pela
raiz. Mais do que norma, a proposta de Jesus, segundo o Evangelho de Mateus, é
fazer da vida contínuo ato de discernimento da situação em favor dos
“pequeninos”. As comunidades de Mateus insistem: Jesus veio cumprir toda a justiça (3,15) e não veio revogar a Lei (5,17). A justiça e a Lei somente são sagradas quando
vividas na misericórdia e gerarem a vida em fraternidade.
Nessa perspectiva, escribas e fariseus são acusados de
transformar a Lei em mandamentos humanos a serviço dos grupos dirigentes: “Ai
de vós, escribas e fariseus, hipócritas, que pagais o dízimo da hortelã, da
erva-doce e do cominho, mas omitis as coisas mais importantes da Lei: a
justiça, a misericórdia e a fidelidade” (23,23). Com as inúmeras observâncias e
costumes, escribas e fariseus, como autoridades do povo judeu, transformavam a
Lei em observância mecânica para a promoção pessoal. Ostentavam práticas
ritualistas destinadas somente a aumentar seu prestígio como pessoas
religiosas. Gostavam de dar esmolas aos pobres em público e vangloriavam-se de
suas obras assistenciais e de sua religiosidade.
Após a destruição do templo e o desaparecimento de vários grupos
judaicos, como saduceus, essênios, zelotas e sicários, o grupo dos fariseus, ou
judeus fariseus, assume a liderança do povo, impõe sua forma de interpretar a
Lei, determina quem é puro ou impuro e persegue os dissidentes. Espalha
conflitos e sofrimentos que provocam diferentes reações nas pessoas
perseguidas. Eis um dos textos exclusivos de Mateus que expressa tal reação aos
judeus fariseus:
Condutores cegos, que coais o mosquito e engolis o camelo! Ai
de vós, escribas e fariseus, hipócritas! Sois semelhantes a sepulcros caiados,
que por fora parecem belos, mas por dentro estão cheios de ossos de mortos e de
toda podridão. Assim também vós: por fora pareceis justos aos homens, mas por
dentro estais cheios de hipocrisia e de iniquidade (Mt
23,24.27-28).
O tom agressivo desse texto testemunha a gravidade do conflito
entre os judeo-cristãos e os judeus fariseus. O conflito de irmãos pela
interpretação e observância da Lei e da tradição do judaísmo! Sem dúvida, esse
conflito obriga os judeo-cristãos a tomar posição cada vez mais forte contra os
judeus fariseus, organizar e fortalecer a comunidade ou “Igreja”. É o processo
de institucionalização (Mt 16,13-20)! Em comparação com o grupo dos fariseus e
sua organização, como a Academia ou o Sinédrio de Jâmnia, reconhecido pelo
império romano, dono do poder, as comunidades cristãs eram apenas pequena
minoria no mundo greco-romano. A ordem é fortalecer sua identidade e unidade, organizar
e reorganizar a Igreja.
O conflito com os judeus fariseus não é a única causa para a
necessidade urgente da organização e do fortalecimento de uma comunidade de
relações sustentadoras. Em busca da sua identidade no judaísmo, os
judeo-cristãos enfrentam também conflitos internos. Há vários modos de
interpretar a mensagem e a prática de Jesus de Nazaré. São divergências que
provocam até escândalos nas comunidades. Eis um texto que confirma essa
realidade:
E aquele que recebe uma criança como esta por causa do meu nome,
recebe a mim. Caso alguém escandalize um destes pequeninos que creem em mim,
melhor seria que lhe pendurassem ao pescoço uma pesada mó e fosse precipitado
nas profundezas do mar. Ai do mundo por causa dos escândalos! É necessário que
haja escândalos, mas ai do homem pelo qual o escândalo vem! (Mt
18,5-7).
Uma das principais causas dos conflitos internos é a tentação de
imitar a sociedade greco-romana vigente, onde há competição, busca de acúmulo,
prestígio e poder (Mt 4,1-11; 20,20-28). Isso está expresso na pergunta dos
discípulos: “Quem é o maior no Reino dos Céus?” (Mt 18,1). Jesus responde com
uma parábola, aproveitando a presença de uma criança – na época, símbolo vivo
dos fracos, dos humildes e dos esmagados pela sociedade. Na comunidade cristã,
ao contrário da mentalidade greco-romana, o maior é aquele que serve.
A outra causa é a entrada, nas comunidades cristãs, de pessoas
não judias, ou estrangeiras, consideradas “gentias”, com suas tradições e
costumes diferentes. A imposição da circuncisão aos gentios, por exemplo, gera
conflito até entre Pedro, judeo-cristão, e Paulo, judeo-cristão helenista (com
a influência da cultura grega), na comunidade de Antioquia. No início do
nascimento do cristianismo, temos o seguinte registro:
Mas quando Cefas (Pedro) veio a Antioquia, eu o enfrentei
abertamente, porque ele se tornara digno de censura. Com efeito, antes de
chegarem alguns vindos da parte de Tiago, ele comia com os gentios, mas, quando
chegaram, ele se subtraía e andava retraído, com medo dos circuncisos. Os
outros judeus começaram também a fingir junto com ele, a tal ponto que até
Barnabé se deixou levar pela sua hipocrisia (Gl 2,11-13).
Essa polêmica continua presente nas comunidades de Mateus, nas
quais a maioria dos membros são judeus, mas também há a presença de gentios. A
resistência dos judeo-cristãos contra a abertura aos gentios persiste e provoca
problemas de relacionamento. O Evangelho de Mateus lembra a abertura de Jesus
para os gentios e para os pecadores: “Deus faz nascer o seu sol igualmente
sobre maus e bons, e cair a chuva sobre justos e injustos” (5,45; cf. 9,10-13).
Como as comunidades de Mateus seguem Jesus em circunstâncias
diferentes? De que forma enfrentam conflitos externos e internos para manter a
identidade e a unidade das comunidades? O discurso de Mt 18,1-35 trata da
vivência comunitária. Em especial, os versículos 15-22 estabelecem a atitude
fundamental na vida comunitária: a correção fraterna, o perdão das ofensas e a
oração em comum.
2. A
correção fraterna e o perdão
Em nossa vida e em nossas comunidades, quase sempre enfrentamos
a dificuldade de perdoar e aceitar os próprios limites, como também os das
pessoas com as quais convivemos. Perdoar é resgatar a relação com o outro
quando o vínculo foi quebrado por alguma ofensa. É um processo difícil, que
exige amor, desprendimento e liberdade interior. As comunidades de Mateus
apresentam algumas orientações sobre a maneira de se relacionar com os membros
que estão se desviando. Vejamos os passos indicados:
a) “Se o teu irmão pecar, vai corrigi-lo a sós. Se ele te ouvir,
ganhaste teu irmão” (Mt 18,15). Na comunidade, o vínculo que une os membros
entre si é fazer a vontade do Pai: “aquele que fizer a vontade de meu Pai que
está nos céus, esse é meu irmão, irmã e mãe” (Mt 12,50). Além do termo irmão, o
Evangelho de Mateus, de maneira carinhosa, chama os membros da comunidade de
“criança” e “pequenino”. O cuidado recíproco é fundamental. É preciso ir ao
encontro da pessoa que está se desviando e não ficar esperando de braços
cruzados. Quando se trata de restabelecer as relações, não importa se o outro
errou, o que importa é a atitude de acolhida e misericórdia. É sair e ir ao
encontro da pessoa que errou, para ajudá-la a retomar o caminho. A atitude de
corrigir o irmão em particular demonstra respeito e compreensão. Ninguém gosta
de ver seus defeitos apontados na frente de outras pessoas. Na conversa
pessoal, há grande possibilidade de a pessoa que fez a ofensa ouvir. Nesse
sentido, ouvir implica a percepção do próprio limite e o arrependimento. A
expressão ganhar o irmão pode ter o sentido de trazê-lo de volta para o grupo.
Diante da realidade nascente das primeiras comunidades cristãs e da descrença,
muitos membros estavam abandonando o seguimento de Jesus. Portanto, o objetivo
é que a pessoa reafirme a sua caminhada e o seu compromisso na comunidade.
b) Conversar com o irmão na presença de testemunhas: se a
primeira tentativa de ir ao encontro do irmão for em vão, a pessoa ofendida não
deve desistir. Porém, na segunda vez, a recomendação é ir ao encontro dele com
a presença de duas ou três testemunhas. Este é um princípio legal que consta na
Lei judaica: “Uma única testemunha não é suficiente contra alguém, em qualquer
caso de iniquidade ou de pecado que houver cometido. A causa será estabelecida
pelo depoimento pessoal de duas ou três testemunhas” (Dt 19,15; 17,6-7).
c) “Caso não lhe der ouvido, dize-o à Igreja” (Mt 18,17). As
possibilidades de conversão não se esgotam. É mais uma tentativa de
reconciliação sem aplicar medidas punitivas. E se a pessoa ainda persistir no
erro, deverá ser considerada como “gentia” ou “publicana”.
Quem eram os gentios e os publicanos? No Evangelho de Mateus,
vemos Jesus ao lado desses dois grupos: por exemplo, ele chama um cobrador de
impostos para segui-lo (Mt 9,9), come com publicanos e pecadores. E ao ser
questionado sobre o seu comportamento, Jesus responde: “Não são os que têm
saúde que precisam de médico, e sim os doentes. Ide, pois, e aprendei o que
significa: ‘Misericórdia é o que eu quero, e não o sacrifício’. Com efeito, eu
não vim chamar os justos, mas pecadores” (Mt 9,10.12-13). Proclama que ele é o
servo para todas as nações: “Porei o meu espírito sobre ele e ele anunciará o
direito às nações” (Mt 12,18). Tratar o pecador como gentio ou publicano é
continuar insistindo para que volte a fazer parte do grupo. A missão de Jesus e
da comunidade cristã é voltada para gentios e publicanos.
Ao terminar de apresentar a maneira de agir com o pecador, o
texto apresenta duas sentenças introduzidas pela expressão “em verdade”, o que
indica o grau de importância do que será dito. A primeira afirma que a ação da
comunidade é confirmada por Deus, e a segunda garante a presença do
Ressuscitado na comunidade: “Em verdade, vos digo: tudo quanto ligardes na
terra será ligado no céu e tudo quanto desligardes na terra será desligado no
céu” (Mt 18,18). A autoridade é atribuída à comunidade ou ecclesia, a assembleia das pessoas seguidoras de
Jesus como Messias. Em Mt 16,19, há uma afirmação semelhante referindo-se a
Pedro. Esses versículos dão a máxima autoridade a Pedro e à comunidade. Diante
da insegurança e da instabilidade vivenciadas pelas comunidades nos conflitos
com a sinagoga e com o império romano, o Evangelho de Mateus reforça que o
poder da comunidade e de seus líderes ultrapassa os poderes existentes.
A autoridade da comunidade vem de Deus e o lugar de sua ação é a
comunidade reunida: “Em verdade vos digo ainda: se dois de vós estiverem de
acordo na terra sobre qualquer coisa que queiram pedir, isso lhes será
concedido por meu Pai que está nos céus. Pois onde dois ou três estiverem
reunidos em meu nome, ali eu estou no meio deles” (Mt 18,19-20). A comunidade é
o lugar da presença de Jesus. É a prática da oração comum que os une e
transmite a certeza de que o Pai atende às suas necessidades.
Qual o limite para perdoar o irmão? Pedro, que sempre aparece como porta-voz da
comunidade, pergunta a Jesus: “Senhor, quantas vezes devo perdoar ao irmão que
pecar contra mim? Até sete vezes?” Jesus respondeu-lhe: “Não te digo até sete,
mas até setenta e sete vezes!” (Mt 18,21-22). Não há limites para perdoar o
irmão. O esforço para perdoar deve ser constante. O número sete pode indicar
plenitude ou totalidade. Portanto, mesmo que as ofensas sejam numerosas, o
perdão deve ser maior ainda. A solidariedade, a misericórdia, a inclusão e o
compromisso com a reconciliação são exigências para as comunidades cristãs de
todos os tempos.
3. Diferentes modelos de comunidades cristãs
Eu te digo que tu és Pedro, e sobre esta pedra edificarei
minha Igreja, e as portas do Hades nunca prevalecerão contra ela. Eu te darei
as chaves do Reino dos Céus e o que ligares na terra será ligado nos céus, e o
que desligares na terra será desligado nos céus (Mt
16,18-19).
Nesse texto exclusivo desse evangelho, a figura de Pedro ganha
supremacia à frente das comunidades de Mateus, oriundas do judaísmo, que
estavam em oposição aos judeus fariseus por volta do ano 85 d.C. O conflito
severo e até arrasador talvez tenha induzido as comunidades de Mateus a
fortalecer sua unidade e organização: Pedro, com autoridade, tem em suas mãos
as chaves do Reino de Deus. Ele é apresentado como chefe supremo para ligar e
desligar do Reino, ou seja, admitir e excluir das comunidades. No processo de
institucionalização das comunidades cristãs, aconteceu o fortalecimento da
autoridade.
Há outros sinais de fortalecimento da organização das
comunidades de Mateus. Por exemplo, entre os evangelhos, somente Mateus utiliza
o termo ecclesia (termo que, no grego, significa
assembleia e depois será traduzido como Igreja: Mt 16,18; 18,17), com certo
grau de organização: poder de julgar, perdoar e condenar (Mt 16,19), direito de
excluir ou excomungar (Mt 18,17-20), de se reunir para celebrar a ceia do
Senhor (Mt 26,26-29), de batizar (Mt 28,19) etc. Um modelo mais estruturado de
Igreja!
Ao ler o Novo Testamento ou Segundo Testamento, é evidente que
encontramos diversidade de realidades, preocupações e modelos de comunidades
cristãs. Eis aqui alguns exemplos:
a) Diversidade e unidade na comunidade cristã de Corinto:
Há diversidade de dons, mas o Espírito é o mesmo; diversidade de
ministérios, mas o Senhor é o mesmo; diversos modos de ação, mas é o mesmo Deus
que realiza tudo em todos. Cada um recebe o dom de manifestar o Espírito para a
utilidade de todos (1Cor 12,4-7).
A comunidade cristã de Corinto é formada por pobres e ricos,
provenientes de diferentes etnias e culturas. Uma comunidade que enfrenta
divisões e rixas internas nos anos 50 d.C.: “‘Eu sou de Paulo!’, ou ‘Eu sou de
Apolo!’, ou ‘Eu sou de Cefas’, ou ‘Eu sou de Cristo!’” (1Cor 1,12; cf. 1Cor
11,17-34). Enfrenta o escândalo, a ostentação e a injustiça: “A caridade é
paciente, a caridade é prestativa, não é invejosa, não se ostenta, não se incha
de orgulho. Nada faz de inconveniente, não procura o seu próprio interesse, não
se irrita, não guarda rancor. Não se alegra com a injustiça, mas se regozija
com a verdade” (1Cor 13,4-6; cf. 1Cor 5,1-13; 6,1-11).
Diante dessa realidade, Paulo afirma que a Igreja toda é vista
como um só corpo de Cristo, onde o poder do Espírito de Cristo atua nos seus
membros (1Cor 12,12-30). Qualquer dom ou trabalho de cada membro não é mérito
individual ou recompensa, mas gratuidade de Deus. Deve servir ao bem comum da
Igreja para vivenciar e testemunhar as palavras e práticas de Jesus Cristo:
“Anunciamos Cristo crucificado, que para os judeus é escândalo, para os gentios
é loucura, mas para aqueles que são chamados, tanto judeus como gregos, é
Cristo, poder de Deus e sabedoria de Deus. Pois o que é loucura de Deus é mais
sábio do que os homens, e o que é fraqueza de Deus é mais forte do que os
homens” (1Cor 1,23-25).
b) A comunidade joanina:
Este é meu mandamento: amai-vos uns aos outros como eu vos
amei. Ninguém tem maior amor do que aquele que dá a vida por seus amigos. Vós
sois meus amigos, se praticais o que vos mando. Já não vos chamo servos, porque
o servo não sabe o que seu senhor faz; mas vos chamo amigos, porque tudo o que
ouvi de meu Pai vos dei a conhecer (Jo 15,12-15).
A comunidade joanina, por ser aberta aos samaritanos (Jo 4;
8,48), por acolher gregos e gentios (Jo 7,35; 11,53; 12,20), por atribuir
papéis de liderança às mulheres (Jo 4,11.27), por aceitar a proposta de Jesus e
vivê-la de forma mais profunda e radical depois de ter sido expulsa do judaísmo
(Jo 9,22; 12,42; 16,2), viveu uma situação de constante conflito externo e
interno. Enfrentou forte perseguição dos judeus fariseus e do império romano,
por volta do ano 95 d.C.: “Expulsar-vos-ão das sinagogas. Mais ainda: virá a
hora em que aquele que vos matar julgará realizar ato de culto a Deus” (Jo
16,2; cf. Jo 9). Além disso, a diversidade de grupos existentes na comunidade,
como ex-fariseus (Jo 3), samaritanos (Jo 4), gregos (Jo 7,35), entre outros,
provocou discussões e atritos dentro da própria comunidade, mas também com
outras que não viviam de forma tão radical o seguimento de Jesus: “Todo aquele
que odeia seu irmão é homicida” (1Jo 3,15); “Se alguém disser: ‘Amo a Deus’,
mas odeia o seu irmão, é um mentiroso” (1Jo 4,20).
Esses conflitos fizeram a comunidade buscar fortalecer, ainda
mais, o laço de amor e solidariedade entre as pessoas: “Filhinhos, não amemos
com palavras nem com a língua, mas com ações e em verdade” (1Jo 3,18). A
comunidade joanina permaneceu fiel às palavras e práticas de Jesus, porque
acreditou nele como a ressurreição e a vida acontecendo no tempo presente (Jo
11; 20), e, enfim, experimentou que “o Verbo se fez carne e habitou entre nós”
(Jo 1,14; cf. 1Jo 1,1-4).
c) As comunidades na primeira carta de Pedro:
Chegai-vos a ele, a pedra viva, rejeitada, é verdade, pelos
homens, mas diante de Deus eleita e preciosa. Do mesmo modo, também vós, como
pedras vivas, constituí-vos em edifício espiritual, dedicai-vos a um sacerdócio
santo, a fim de oferecerdes sacrifícios espirituais aceitáveis a Deus por Jesus
Cristo (1Pd 2,4-5).
Nas comunidades cristãs de várias regiões da Ásia Menor, que
receberam a primeira carta de Pedro por volta do ano 90 d.C., havia
estrangeiros residentes, forasteiros, escravos, mulheres de maridos não
cristãos etc. A maior parte das pessoas não tinham cidadania plena. Não podiam
ter terra, receber ou transferir herança, não tinham direito de votar, nem
mesmo podiam casar com cidadãos. Eram desprezadas e rejeitadas pela sociedade e
viviam na insegurança. Por isso, a primeira carta de Pedro orienta:
“Sujeitai-vos a toda instituição humana por causa do Senhor” (1Pd 2,13). A
submissão à autoridade era uma questão de sobrevivência. Não era uma submissão
ingênua, mas consciente, com o objetivo de evangelizar por meio da prática do
bem e do amor em meio às situações de opressão e insegurança (1Pd 2,13-3,17).
Para a vivência interna da comunidade, a primeira carta de Pedro
também relembra que esse grupo de excluídos foi eleito por Deus para formar um
“sacerdócio santo”. Agora, o sacrifício será a oferta da própria vida, que se
concretiza no culto, no serviço, na doação, no amor recíproco, na entrega
cotidiana. Nessa nova prática, cada pessoa é chamada a assumir o sacerdócio. O
trabalho e o poder são partilhados. Com a honra e o respeito de serem eleitos e
abençoados por Deus, os excluídos se comprometem na organização da comunidade e
na construção de nova sociedade de fraternidade: “Finalmente, sede todos
unânimes, compassivos, cheios de amor fraterno, misericordiosos e humildes de
espírito. Não pagueis mal por mal, nem injúria por injúria; ao contrário,
bendizei, porque para isso fostes chamados, isto é, para serdes herdeiros da
bênção” (1Pd 3,8-9).
4. Uma palavra final
Todas essas passagens do Novo Testamento mostram claramente que
as comunidades cristãs ou igrejas locais têm seus problemas e suas próprias
organizações, devido às suas realidades diferentes. As comunidades cristãs são
os meios pelos quais as palavras, as práticas e a vida de Jesus de Nazaré são
experimentadas e transmitidas. Em princípio, as comunidades devem ser um dos
espaços onde seus membros experimentam a presença viva de Jesus Cristo no seu
seio: “Já não sou eu que vivo, mas é Cristo que vive em mim. Minha vida
presente na carne, vivo-a pela fé no Filho de Deus, que me amou e se entregou a
si mesmo por mim” (Gl 2,20).
Em 8 de dezembro de 1881, com a presença de um sacerdote
francês, primeiro pároco, a igreja foi erguida na ilha de Kaminoshima. Até
hoje, às 5 da manhã, o sino da igreja continua tocando, meia hora antes do
início da missa. Agora, a celebração dos sacramentos já não está na mão dos
leigos, como no tempo dos kakure kirishitans.
Porém os leigos, sobretudo os anciãos, são muito ativos na organização da
Igreja. Junto com os fiéis das outras religiões, eles animam e orientam a vida
no dia a dia da ilha, especialmente por meio da solidariedade alimentada e
fortalecida na longa história. O cristianismo fincou raízes no Japão. Continua
fincando, pregando e experimentando o mistério do Deus da vida: “Ele está no
meio de nós”.
Texto Copilado
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